Zurück zu Hegel! — Falando pelos cotovelos… mas em hegelês
Hegel é certamente o mais complexo pensador da modernidade. Idealista alemão do período pós-Kant, o filósofo nascido em Stuttgart em 1770 produziu um sistema de pensamento que integrava teologia, direito, história e outras áreas do conhecimento em um todo filosófico articulado, na tentativa de elevar a filosofia à categoria de ciência. Para tornar ainda mais difícil a leitura da obra hegeliana, alguns de seus textos passaram por grandes complicações. As páginas finais da Fenomenologia do Espírito (1807) foram escritas durante a invasão de Napoleão à Jena, sob o estrondo dos canhões franceses. A Filosofia do Direito (1821) sofreu inúmeras modificações para evitar a censura da época.
Tamanha complexidade rendeu, ao longo dos séculos XIX e XX, dezenas de interpretações do pensamento de Hegel. Fato interessante é que, apesar de jamais ter saído do bate-boca acadêmico e intelectual, esse curioso pensador é praticamente ignorado pelo debate público. O presente ensaio visa introduzir o pensamento político de Hegel em seu contexto histórico e biográfico e exibir algumas peculiares interpretações de sua obra a leitores ainda não iniciados na sua linguagem, servindo de “primeiro contato” para com o polêmico idealista alemão.
Em 1789 explode a Revolução Francesa: a burguesia ascende ao poder, o Estado absolutista é substituído pela república liberal e racionalista e eventualmente transforma-se no Terror. Milhares de pessoas foram guilhotinadas, desde absolutistas como o próprio rei Luís XVI até renomados colaboradores da Revolução, como Robespierre e Saint-Just. Em 1804 Napoleão toma o poder e dá início ao expansionista Império Napoleônico, configurado como monarquia constitucional de tendências liberais.
No Seminário de Tübingen, estudando teologia, o jovem Hegel foi um fervoroso apologista da causa revolucionária. Era, afinal de contas, um leitor entusiasta de Rousseau. Junto de Schelling (futuro amigo e eventualmente rival intelectual) e outros colegas de seminário, cantou a Marselhesa, hino da Revolução, a contragosto do duque local. Anos mais tarde, escreveu ao filósofo (e amigo) Niethammer uma carta em que se referia à Napoleão Bonaparte como “a alma do mundo montada em um cavalo branco”. De 1789 até 1831 (ano de sua morte) comemorou o aniversário da Queda da Bastilha.
Hegel entendia a Revolução Francesa como a realização do ideal racional de liberdade na história concreta. A partir da revolução, as instituições políticas passavam a ser embasadas na racionalidade e tinham como critério de legitimidade a realização efetiva da liberdade. Aos olhos do idealista, Napoleão era a superação do absolutismo e do republicanismo jacobino: com “alma do mundo’’, Hegel queria significar o imperador francês como um “grande indivíduo na história universal” cuja função histórica era espalhar o Estado moderno pela Europa. Napoleão e a Revolução Francesa eram como o espírito do tempo [Zeitgeist] que empurrava o mundo para uma modernidade na qual as instituições seriam elevadas à categoria de racionais, desse modo servindo como condições de possibilidade para a realização da liberdade na vida concreta.
Do século XVI ao XVIII, a Europa passou pela dissolução dos poderes locais característicos do feudalismo e consequente centralização do poder nas monarquias absolutistas. Em países como a França, a Inglaterra e a Suécia, o poder de Estado foi sendo compactado em hierarquias mais sólidas, unificadas sob as vontades de monarcas absolutos mais capacitados a defender seus territórios militar ou diplomaticamente. Na Alemanha, por outro lado, o então Sacro Império Romano-Germânico sofria com grandes desequilíbrios de força e acabou sendo despedaçado pelos poderes de príncipes regionais. Já no final do século XVIII, a maior parte da Europa era administrada por Estados modernos centralizados, que em breve (especialmente depois da Revolução Francesa) seriam secularizados e despidos de seu caráter absolutista personificado no monarca, abrindo caminho para a ascensão do Estado Liberal (constitucionalista, burocrático e por vezes até democrático). Por outro lado, os alemães ainda eram governados por um Estado residualmente feudal incapaz de conciliar o individualismo característico da emergente economia de mercado com uma convivência coletiva preocupada com o bem geral.
Quando residente em Frankfurt, Hegel interrompeu seus estudos sobre a filosofia de Jesus para esboçar o ensaio que seria publicado como A Constituição da Alemanha [Verfassung Deutschlands]. No texto, afirma que a organização daquele Estado alemão existente era antiquada: estava isolada do espírito do tempo e não condizia com as exigências da nova época. Pelo termo “Estado”, Hegel costuma se referir à forma de organização dos indivíduos em uma totalidade orgânica que articula com harmonia o Estado propriamente dito (o Estado político, o governo, as leis positivas), os setores organizados da economia (como associações e sindicatos) e outras instituições autônomas (como a família e comunidades religiosas), além dos próprios indivíduos com seus interesses particulares. Em textos posteriores, o idealista denominou essa totalidade de vida ética [Sittlichkeit].
Observando a fragmentação da Alemanha de sua época, Hegel descreve aquela sociedade como uma repartição aleatória de propriedades em que príncipes legislavam arbitrariamente em prol de seus interesses pessoais e a liberdade individual era suprimida: por isso, conclui afirmando que a situação política da Alemanha era de uma anarquia jurídica em que o direito não passava de direito contra o Estado. Hegel defendia então que, para se tornar devidamente um Estado, a Alemanha precisava de uma renovação radical em suas instituições que integrasse as exigências modernas (o espírito do tempo) com o que ele entendia como o desenvolvimento lógico da história particular do povo alemão (o espírito do povo [Volksgeist]).
A ideia de Hegel do Estado moderno, que deve ser realizada pelos agentes históricos e políticos, é a de uma articulação entre aqueles diferentes setores da sociedade, em que as instituições servem de mediação entre os interesses particulares, os interesses coletivos e o bem universal. Nessa totalidade orgânica, os indivíduos reconhecem a liberdade uns dos outros e compreendem a si mesmos como participantes de uma comunidade que possui uma certa história, certos princípios e necessidades que são também a história, princípios e necessidades dos indivíduos e das instituições separadamente. Para Hegel, é o direito público, e não o privado, que garante a liberdade: enquanto o segundo permite a liberdade somente no restrito espaço da propriedade privada, é o primeiro que relaciona esse espaço privado com a convivência coletiva, harmoniza as instituições autônomas para com as instituições políticas e garante a participação do indivíduo na administração da comunidade.
Ao ler Hegel, o filósofo britânico Roger Scruton encontrou na filosofia política do alemão a mais sistemática representação da visão conservadora de uma ordem política. Ele compara a transição de Kant a Hegel com aquela de Locke a Burke: uma virada das aspirações liberais para o realismo conservador. Scruton aposta em uma interpretação que valoriza os conceitos de Volksgeist e Sittlichkeit. A filosofia política de Hegel seria uma resposta ao excesso de abstração presente na filosofia moral de Kant: por mais que válidos em si mesmos, os direitos abstratos (ideias gerais como liberdade, a sacralidade da propriedade privada, igualdade, etc.) devem ser preenchidos com o conteúdo concreto da realidade histórica, social e unidos às conquistas históricas de agentes reais. Sem essa unidade, esse preenchimento do formalismo kantiano (característico do liberalismo, de acordo com Scruton) com o conteúdo concreto da vida ética em comunidade, as teorias liberais falham ao ser aplicadas à realidade.
Antagônica ao Hegel conservador de Scruton é a interpretação de Simone de Beauvoir: criticando Sartre, a pensadora francesa viu na filosofia hegeliana um leque de ferramentas para elaborar uma filosofia progressista e emancipatória que serve de base ao feminismo. De Beauvoir toma conceitos hegelianos como o reconhecimento e a consciência-de-si no outro para descrever a condição histórica da mulher e seus papéis sociais. Segundo a autora, na vida social os homens têm sido associados à racionalidade, definidos por um status de cidadãos, pessoas de direito e sujeitos morais. As mulheres, por outro lado, não têm sido reconhecidas como indivíduos livres, mas sim como objetos passivos cuja subjetividade é imposta pelo patriarcado. A filósofa feminista afirma, inspirada pela dialética do senhor e do escravo de Hegel, que a liberdade individual exige a liberdade dos outros; quer dizer, a liberdade do eu particular depende da igual liberdade universal, de modo que o eu livre que oprime o outro não é verdadeiramente livre.
Uma terceira interpretação dos textos de Hegel é aquela proveniente do professor Frederick C. Beiser. Analisando a filosofia da história do idealista alemão, Beiser o descreve muito peculiarmente como um progressista conservador. O hegelianismo se aproxima do progressismo por acreditar que a racionalidade impera acima da tradição, dos hábitos e costumes. Se afasta deles pelo motivo que o aproxima do conservadorismo: acredita que a tradição, os hábitos e costumes (a vida ética e a historicidade de um povo) têm espaço na racionalidade sendo parte fundamental da liberdade concreta, realizada. Nesse sentido, institui-se como superação sintética da dicotomia progressismo/conservadorismo ao afirmar haver uma lógica racional imanente na realidade histórica e social de um povo, de modo que a liberdade exigida pela autonomia da razão é realizável no contexto de uma vida em comunidade. Em suma: o real é racional e o racional é real.
Independentemente da interpretação que tome como base, fato é que o leitor de Hegel enfrenta grandes dificuldades para compreendê-lo. Foi um autor proeminente e tremendamente competente ao elaborar uma obra volumosa que transitava por vastas áreas do conhecimento. Discutiu o significado da vida de Jesus, o método especulativo como ferramenta de transição da lógica para a realidade e a vida ética como superação do direito abstrato e da moralidade. Em seus milhares de páginas, discorreu sobre tudo quanto fosse possível com assustadora profundidade. Sua linguagem exageradamente técnica, sua falta de talento como professor, conferencista e as circunstâncias sob as quais sua obra foi produzida, por outro lado, caracterizam seus textos com um tipo de idioma próprio que abriu espaço para dezenas de interpretações: o Hegel conservador de Scruton e Oakeshott, o Hegel intersubjetivista de Habermas e Honneth, o Hegel emancipatório de De Beauvoir e Butler e o Hegel proto-totalitário e antidemocrático de Popper são bons exemplos da ambiguidade desta vastíssima obra. Hegel falava pelos cotovelos… mas em hegelês.
REFERÊNCIAS:
Grespan, J. (2002). Hegel e o Historicismo. História Revista.
Bavaresco, A., Vaz-Curado, D., & Konzen, P. R. (2010). As leituras da filosofia do direito de GWF Hegel: entre hermenêutica e recepção. Veritas (Porto Alegre), 55(3).
Lima, E. (2014). Rompendo com o fascínio pelo conceito abstrato: alguns motivos práticos e teóricos na elaboração da dialética especulativa. Síntese: Revista de Filosofia, 41(129), 5–33.
de Souza, R. B. (2018). O projeto de vida ética no escrito A Constituição da Alemanha do jovem Hegel. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, 23(2), 105–119.
Scruton, R. (2017). Conservatism: Ideas in Profile. Profile Books.
Sinnerbrink, R. (2017). Hegelianismo. Editora Vozes Limitada.
BEISER, F. C. (2014). O historicismo de Hegel. Hegel. São Paulo: Ideias & Letras.
Texto por Carlos Boeck.
Arte Dayane Matos.