Clube Damas de Ferro
4 min readJun 1, 2021

The Boys e a banalidade do mal

Em uma sociedade norte-americana não tanto distópica, apresenta-se The Boys, uma série de super-heróis um tanto quanto fora do tradicional. Desenvolvida por Eric Kripke, é baseada nas histórias em quadrinho de Garth Ennis e Darick Robertson. No seu desenvolver são abordados diferentes assuntos que estão vigentes na atual sociedade complexa, mas um deles chama a atenção e está interligado com a banalidade do mal de Hannah Arendt. Antes de continuar a leitura se faz necessários dois alertas: podem aparecer spoilers e causar incômodo.

Hannah Arendt foi uma filósofa e cientista política que viveu no século passado, viveu o regime nazista e foi presa em Auschwitz por ser judia, mas conseguiu escapar. Na década de 1930, após escapar dos nazistas, chegou aos Estados Unidos e lá ministrou aulas sobre seus escritos, publicou obras e foi convidada a participar do julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, onde percebeu o fenômeno da banalidade do mal. Por suas análises polêmicas, acabou sofrendo forte exposição negativa pela mídia com amparo da população, poucas pessoas compreenderam os fenômenos, analisados pela autora, na época. A banalidade do mal foi um desses estudos que não encontrou grande aceitação, já que se trata de um questionamento histórico e político que perpassa a nossa ética e ideia de ser humano. Esse fenômeno, que Arendt percebeu e desenvolveu no mundo intelectual, causa estranheza e serve de amparo para análises complexas nos dias atuais, como foi na sua época.

Mas, o que vem a ser esse fenômeno? De forma resumida, mas não simplificada, banalidade do mal é uma absorção no meio cultural e político, onde os comportamentos violentos e cruéis que foram incorporados, perante o público para com o outro, não são percebidos como tal, pois deixamos de refletir sobre ele - o mal -, já que está enraizado nas nossas visões de mundo, fazendo parte do que não paramos para pensar, sem afetar suas consequências nos nossos cotidianos, chegando ao ponto de considerarmos normal esses determinados comportamentos. Isso, inclusive, pode estar inserido no que é considerado pela lei e no que aparece como direitos garantidos em constituição.

Nesse momento entramos na série, pois os super-heróis são a representação do mal e tornaram isso como algo aceito no meio social, com a absorção de discursos que tinham a ideia de proteger a pátria e restaurar os valores norte-americanos que estavam sendo rotos.

A população em si, com seus poderes de massificar discursos e transformar visões distorcidas em valores de determinada sociedade, considera os comportamentos dos heróis como algo normal, afinal, eles estavam combatendo o mal. Entretanto, o mal que eles vinham a combater eram comportamentos que quebravam a visão patriótica dessa população apoiadora, ações de indivíduos outsiders. Assim, eles afastavam-se das suas responsabilidades enquanto indivíduos - lembrem-se de Hayek -, causando uma ruptura sobre o que é ser humano. Mídia e redes sociais auxiliam nesse aspecto. Na série, a mídia é a principal responsável por colaborar na imagem dos super-heróis. O líder dos Sete - forma como a organização é reconhecida -, John, é cruel e transforma os discursos como manobra para conseguir acalmar o público a favor dos comportamentos dos seus súditos e esses não o questionam. Em vários momentos ele massacra indivíduos por considerar que esses rompem com os valores tradicionais que acredita ser o melhor dentro da sua percepção e, com isso, transforma esses comportamentos como o padrão do grupo. Quando questionado pelos colegas, a sua resposta é que assim garantirá a segurança dos Sete.

Maggie Shaw, ex-namorada de John, até tentou ser uma super-heroína como a regra diz, entretanto, sempre manteve seus comportamentos de acordo com o que era esperado pelo líder, já que ele transformava todos os horrores como comportamentos normais para os outros e para a sociedade. Quando ela foi submetida a um breve interrogatório e assumiu a homossexualidade, ele utilizou isso para alcançar mais pessoas com os discursos e transformou a escolha individual de Maggie como mercadoria para vender a população.

Todos os outros membros replicam esse comportamento, cada qual na sua esfera e alcançando seus determinados públicos. Esse caráter de não pensar e transformar o mal como comportamento normal para sociedade está vigente na série, não apenas nos super-heróis, mas, no comportamento das massas quando determinado valor se coloca como padrão e todos se submetem a mediocridade de não refletir sobre ele, conquistando assim caráter institucional - não ontológico - mas, submerso ao campo político e histórico. Negativando o caráter humano e ético, John e os Sete propagam aspectos negativos e violentos, transformando-os em comuns e a população se negando a refletir.

Assim, é notável como uma série compreende nossas realidades e como a banalidade do mal permanece como fenômeno sem reflexão na sociedade atual. Afinal, nada como uma carreata da paz para acalmar o público. Importante, isso também acontece em The Boys quando a popularidade dos super-heróis começa a decair. Como afirmou Hannah Arendt, “nenhum homem é o ato em si, pois converge diversos acontecimentos, incluindo aqueles que o precede”.

Texto por Tailize Scheffer Camargo

Arte por Carlos Boeck

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