O início da descriminalização do aborto no Brasil
“A maioria das ondas se formam a partir do sopro do vento na superfície do mar. […] Quanto mais veloz e durável for o vento, maior será a altura da onda.” (EBC,2016)
Bem como as ondas do mar, muitos fenômenos sociais ocorrem em ondas, como quando se é possível estipular a origem de um era em um evento singular que mais tarde vai expandindo e possibilitando o surgimento de outros eventos semelhantes, que vão aumentando em quantidade e intensidade de maneira escalar até perderem força e se dissiparem, restando as consequências. Exemplo de ondas amplamente conhecidas foram as que trouxeram o aumento exponencial de produção, as Revoluções Industriais; no âmbito político e jurídico é possível identificar as ondas constitucionais, quando diversos países passam a adotar constituições (ELSTER, 1995).
Nesse texto será defendido que uma nova onda se iniciou, com enfoque na América Latina, no que tange a descriminalização do aborto, afinal, apenas no último ano três países flexibilizaram a legislação acerca da interrupção voluntária da gravidez; são eles: México, Argentina e Chile. Ademais, países como Uruguai, Peru, Equador e Colômbia têm leis que já possuíam poucas restrições sobre a matéria, sendo Uruguai, inclusive, o único que não possui restrição alguma.
Antes de entrar mais a fundo na questão no âmbito brasileiro, faz-se necessário entender uma tensão muito pertinente quando se trata do Direito Comparado: a tensão entre universalistas e particularistas (HIRSCHL, 2014). Os primeiros dão uma importância maior para leis transnacionais — de caráter universal, um exemplo disso são os direitos humanos -, contudo, podem acabar por desconsiderar aspectos culturais e sociais do país em análise. Os segundos, particularistas ou culturalistas, destacam o “habitus cultural” de cada nação analisada — a própria mentalidade jurídica -, entretanto, podem cair no vício de relevar em excesso o sentimento de soberania das tradições de cada país.
Assim, de acordo com o supracitado, tentar-se-á evitar esses vícios de análise atendo-se o mais próximo possível da realidade brasileira, mas sem deixar de observar valores transnacionais. Ressalta-se ainda que o intuito não é estabelecer uma posição sobre o que seria certo ou errado, ou questões que esse tema costuma suscitar (quando se origina a vida?), mas trazer alguns fatos que levam a entender que o Brasil pode demorar a descriminalizar o aborto.
No Brasil, apenas em três situações a lei permite que haja a interrupção da gravidez sem penalização, são elas: em caso de risco da saúde da mãe, em caso de feto anencefálico e estupro. O último motivo seria o que mais desperta ânimo no povo brasileiro, afinal, ainda no ano passado (2020), uma criança de 10 anos, molestada pelo tio, teve o hospital onde faria o aborto cercado por pessoas que se diziam conservadores e cristãos. Ou seja, mesmo com a possibilidade de abortar em caso de estupro garantida em 1940, pelo Código Penal, parte da população barulhenta discorda veementemente.
Certo, foram levantadas duas características da maior parte dos brasileiros, ou pelo menos duas origens do que levam a estes agirem como contra a legalização do aborto. A primeira é o passado cristão com raízes desde o período de colonização que se torna bem evidente quando comparamos com o nosso vizinho ao Sul, o Uruguai (com legalização do aborto desde início da década passada), que não tem latente uma base cristã tão forte como a brasileira.
O segundo ponto é o conservadorismo, não o conservadorismo inglês de Burke, mas um conservadorismo próprio partilhado desde as camadas mais paupérrimas da sociedade e se atrela bastante à base cristã. Novamente usando o Uruguai como exemplo, pela proximidade, passado entrelaçado e recente ditadura militar, a base conservadora é consideravelmente menor.
De acordo com o supracitado, pode-se justificar o porquê ainda não houve a descriminalização, mas não que não haverá uma, independentemente da opinião da autora do texto. Uma nova onda iniciou-se em 2020 na América Latina, e mesmo países com grande base religiosa mudaram suas legislações ou aumentaram a interpretação do código (a exemplo do México e da Argentina). Bem, diante disso, percebe-se que exemplos internacionais de mudança na legislação sobre a interrupção da gravidez, um evento em cadeia que começou ano passado e se aproxima, ao menos geograficamente, do Brasil.
Não se deve esperar que uma mudança ocorra logo no Congresso, o mais provável é que ocorra como ocorreu no México, uma decisão do Supremo Tribunal, contudo, isso acaba por despertar uma nova questão, onde está a liberdade do povo em decidir o futuro dessa matéria, quando os Ministros do STF, embora indicados pelo Presidente da República, e que passa por sabatina do parlamento, tem somente 33% da aprovação popular.
Bem, uma questão um tanto interessante, pois o STF tem como função apenas proteger a Constituição e seus pilares fundamentais. Mas, existe o fenômeno politização do judiciário, onde juízes atuam como ativistas para promover mudança que os aprouver, ou como eles acreditam ser o correto, que pode ser muitas vezes díspar da corrente majoritária dos brasileiros.Então, quando estariam os Ministros agindo como ativistas ou realmente como os juízes indicados para ser o Guardião de um texto vivo?
Referências
FOLHA DE SÃO PAULO. DataFolha: Reprovação aos ministros do STF volta a subir e atinge 33%. 21 de jul. 2021. Disponívle em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/datafolha-reprovacao-aos-ministros-do-stf-volta-a-subir-e-atinge-33.shtml
EBC. Como se formam as ondas do mar? 22 de mar. 2016. Disponível em: https://memoria.ebc.com.br/infantil/voce-sabia/2016/03/como-se-formam-ondas-do-mar
ELSTER, John. ‘Forces and Mechanisms in the Constitution-Making Process’. Duke Law journal, 1995.
HIRSCHL, Ran. Comparative Matters: The Renaissance of Comparative Constitutional Law. First edition. Oxford: Oxford University Press, 2014.
Texto por Letícia Sorrequia.
Arte Tailize Scheffer.