Liberdade, Burke e Nós
Diriam alguns conservadores hodiernos que liberdade é atacar instituições tradicionais do direito pátrio ou algo do tipo. Talvez, o excesso de metafísica sofística de certos austríacos racionalistas tenham levado aos devaneios destes prudentes pregadores do ceticismo político. Uma pequenina dose de Edmund Burke, fundador da tradição conservadora, deve trazê-los de volta à moderação.
“Eu gosto de pensar que amo uma liberdade viril, moral e regrada”, diria aquele irlandês. Os meses de correspondência com o amigo Depont o levaram a melhor elaborar este seu “amor com ressalvas”. Enquanto Danton e Saint-Just cobriam-se de papéis borrados de direitos dos homens, Burke propunha maior cautela: não se tece elogios ou críticas a nada que diga respeito às ações humanas despojando de suas circunstâncias.
Quando retirado da total nudez da abstração metafísica e posto às luzes do real contexto, o patriota generalíssimo, que enfrenta onze Jaimes e Luíses, se revela um Cavaleiro da Triste Figura degladiando moinhos de vento. Na suspensão abstrata, a liberdade (como qualquer princípio) é sempre boa. É o relevo do contexto que lhe dá a textura necessária ao seu julgamento: não se parabeniza um assassino por ter-se libertado de sua prisão.
Por óbvio que ver a liberdade ser reivindicada pelas massas é em si mesmo de alguma valia: mas não basta que seja esta liberdade a animadora da fermentação popular. Só se deve comemorá-la se aqueles que a exigem o fazem erguendo um corpo sólido que lhe possa sustentar. A liberdade dos homens em conjunto, diria Burke, é poder. Sem ser comedida, temperada, disciplinada, não há nada que dela resulte que se possa comemorar.
Alertava o parlamentar britânico que instituições historicamente construídas não devem ser pisoteadas pelas conveniências efêmeras. Note-se que o federalismo brasileiro é uma delicadíssima obra de contrapesos verticais e distribuição dos poderes. A autonomia dos Estados-membros, em nossa história republicana, foi relativizada em prol do fortalecimento da União (“federalismo moderno”, diriam alguns juristas do século XX) tão somente nas cartas constitucionais de 1937 e 1967, servindo de auxílio aos regimes ditatoriais correspondentes. Curiosas as noções de experiência e “usos consagrados” de nossos conservadores contemporâneos, que não passam um dia sequer sem desprezar a herança federalista pátria.
Explica Burke que não há liberdade sem um complexo edifício legal de garantias e instituições testadas pela história. Nossos conservadores, não bastasse a recente Marcha sobre o STF, ainda ameaçam a independência do Ministério Público, este contraforte de garantias da cidadania brasileira, também relativizado em sua autonomia tão somente nas constituições ditadoras de 37, 46 e 67.
Nada mais certo que isso: uma compota de picles é mais conservadora que esses jacobinos que aí estão. A liberdade certamente já foi algo enobrecida neste país, e ainda há de sê-lo novamente quando a prudência falar mais alto que os berros dos tantos Jean-Paul Marats de dedo em riste que balbuciam trechos de Virtude e Terror pensando se tratar das Reflexões.
Texto por Carlos Boeck.
Arte Domithila Novach.