Governo: um mal necessário e a falácia do anarquismo
As perguntas sobre como nos organizamos em sociedade, de que forma e por quais motivos não são nem um pouco recentes, pelo contrário, estão dentro das perguntas existenciais do ser humano desde o momento em que saiu do estado de sobrevivência para tentar prosperar. Como vamos dividir as tarefas? De que maneira tomaremos as nossas decisões? Quem decidirá? Quem executará?
Isabel Paterson não quer só discorrer sobre essas questões, ela quer realmente entender. Antes de expor sua própria opinião, ela percorre o entendimento de outras nações, interpreta os fatos históricos que levaram algumas nações a se organizarem e optarem por limitar, em algum momento, a liberdade (que é tão cara para a autora).
Ela começa refletindo sobre como o “mito do nobre selvagem” foi um conceito forjado pelos europeus para tentarem justificar suas próprias instituições. Em um continente, durante a época de conquista de colônias, movido pelo absolutismo e a intervenção moral da religião, descobrir outras formas de organização como das tribos era pressupor, com certeza, que eles não tinham governo. Paterson afirma que essa foi a primeira grande generalização abstrata construída pelos europeus.
O desespero do continente foi de tentar explicar para os seus qual a necessidade de continuarem na mesma lógica estatal, se havia tribos com uma mentalidade totalmente diferente. A primeira tentativa foi encaixar em uma noção “poética e pictória”. A ideia de que o “selvagem” era particularmente mais nobre por natureza (falando, aqui, de tribos norte-americanas). Afinal, (conforme relato da autora) existiam menos crimes cometidos entre essas tribos sem governo do que em sociedades com governos autoritários que controlavam qualquer aspecto da vida dos seus súditos. As tribos cometiam sua violência privada, mas os europeus a teriam legitimado em âmbito estatal com a prática da tortura.
Contudo, é preciso apontar que o problema não é ter um governo em si, mas um absolutista. Um estado autoritário sempre será pior do que qualquer outra forma de organização. Uma civilização arbitrária também será extremamente nociva, ainda que menos complexa do que uma nação (complexa no sentido de serviços, tecnologia, índices populacionais).
Equivocada ou não, a verdade é que essa noção de um “nobre selvagem” levantou o debate se o homem, no geral, não seria virtuoso já de nascença, e a sociedade o corrompia. Claro, são discussões que já conhecemos: Rousseau fala exatamente isso. Temos Hobbes que defende o contrário. E, por fim, (entre outros) temos Locke afirmando a natureza sociável do homem em busca de equilíbrio, e Kant com o seu imperativo categórico.
Então, por que é importante essa análise de Paterson? Porque ela mostra o gatilho para uma nova discussão, que acabou sendo responsável para a construção da ideia de que, em vez da virtude, talvez fosse a liberdade, com todos os seus direito de proteção, inata ao homem.
“A mudança da base europeia de governo para outra base foi feita postulando-se que os homens nascem livres. Uma vez que começam sem governo, devem, portanto, institui-lo por acordo voluntário. Assim, o governo deve ser um agente deles, não um superior. A vontade é uma função do indivíduo, logo o indivíduo tem o direito prioritário.”
Para Paterson, então, qual a necessidade de um governo? Ela argumenta que o homem não é nem bom, nem mau, mas é, sim, capaz de descumprir contratos. Nesse caso, o Estado teria uma função de polícia, garantindo aquilo que fora combinado. Nesse sentido, ela defende que o governo seria uma mal necessário, para regular as combinações feitas em sociedade. Contudo, adverte a importância desse poder ser limitado, caso contrário, voltamos para uma era perigosa de opressão.
Essa argumentação é que leva Paterson à falácia do anarquismo. Isso porque, se se defende um Estado mínimo, qual o motivo de não defender Estado algum? Citando uma seita de uma colônia no Canadá, em que os integrantes eram adeptos ao anarquismo, ela aponta:
“ (…) alternou-se (a seita) em disputas que paralisavam a produção e lideranças autocráticas que tomavam arbitrariamente para si uma grande parcela do que era produzido. Esse é o resultado inevitável da tentativa mais cuidadosa de permanecer numa condição de anarquia depois que a relação moral entre os membros da comunidade se estendeu no espaço e no tempo de maneira a permitir uma economia mais desenvolvida que a dos selvagens. Muito trabalho é perdido; e os membros da comunidade são submetidos a infortúnios, pobreza e ignorância.”
Ou seja, um povo sem governo está sujeito a arbitrariedades; um povo com governo, mas totalitário está sujeito a arbitrariedades. É possível interpretar então que se a estrutura política não é realizada por meio de contrato, o indivíduo não é um elemento importante para aquela equação. Seja como for, ela não acredita em governo pela força, por ser uma impossibilidade física. Ressalta: “A força é que é governada”, pois ele (o Estado) seria consequência de uma faculdade moral.
Paterson chega à conclusão que somente sociedades que não são complexas conseguem se adequar ao anarquismo. Isso porque quanto mais atividades produtivas e menos estado de sobrevivência, mais questões você tem que resolver, ou seja, existe uma questão de espaço-tempo: agora é preciso trabalhar a terra, estocar, construir estruturas para moradia, etc.
Por fim, Isabel Paterson reafirma que “o governo é um instrumento de negação”. Quanto menos força usar, menos intervenção existir, mais a nação prospera. A conquista da liberdade não deveria ser uma conquista, mas, sempre, um reconhecimento de um direito.
Texto por Cínthia Barbosa
Arte por Carlos Boeck