Deu a louca na Direita!
Dado o contexto recente da política brasileira, não é difícil sentir descontentamento quanto à direita tupiniquim. Os flertes com golpe militar, o movimento anti-vacina e o conspiracionismo à moda de Os Protocolos dos Sábios de Sião são só o fim da picada. Desde a década de 2010, nossos direitistas têm se apegado a bizarrices como um tal de anarcocapitalismo conservador, além de insistir em um suposto nazismo de esquerda e desesperar-se com o espantalho do kit gay.
Meu intuito inicial era de compor uma feroz crítica a essas e outras características que compõem a ideologia da direita nacional. Uma boa amiga, porém, advertiu-me de que o trabalho demandaria meses de estudo e teria impacto nenhum; me convenceu de que tal projeto era apenas fruto da revolta ambiciosa de um típico hegeliano rabugento. Assim, decidi discorrer com leveza e brevidade sobre dois acontecimentos que representam genuínas pérolas da Nova Direita da redemocratização brasileira: o liberalismo autoritário e o conservadorismo revolucionário.
O Fórum Liberdade e Democracia promove, desde 2010, grandes palestras e conferências com grandes nomes do liberalismo e conservadorismo nacionais. Em sua 10ª edição, em 2019, deu voz ao então Governador do estado de Minas Gerais Romeu Zema, do Partido Novo, de tendência liberal-conservadora. Ele inicia seu discurso [1] defendendo a “difusão da causa liberal”. Logo em seguida, relativiza a mais recente ditadura militar brasileira:
“Eu sou nascido em 1964. Exatamente no ano da revolução, ou do golpe militar, depende de quem quer dar o nome. De 1964 a 1985 nós vivemos um regime militar — alguns chamam de ditadura, de repressão — e de 1985 até o ano passado, nós vivemos em uma democracia. E eu posso dizer por mim mesmo — foi uma democracia irresponsável.”
É preciso dizer o óbvio. O liberalismo surgiu no contexto do absolutismo e constitui-se como movimento em prol das liberdades individuais, defendendo o que considera serem direitos e garantias fundamentais (como a liberdade de expressão e o habeas corpus). Não obstante o constitucionalismo liberal dos séculos XVIII e XIX ter sido marcado pela defesa do indivíduo ante o poder do Estado, os liberais logo abraçaram as instituições democráticas como “conjunto de regras” para o exercício balanceado e plural do poder. A fala hesitante do Governador faz chacota aos grandes apologistas da democracia liberal, como Alexis de Tocqueville.
Devo fazer justiça, porém, a outro conferencista do mesmo evento. Eduardo Wolf, professor da USP e notório estudioso do pensamento conservador, logo pôs os pingos nos is [2]:
“Como alguém pode ter dúvidas de que um regime que fecha o Congresso, mata, prende, tortura, é uma ditadura ou não é? É uma ditadura!” Em seguida, conclui fazendo referência à tradição conservadora clássica, de matriz britânica:
“É impossível conceber a hipótese de um líder político do Partido Conservador — não estou nem falando de liberais — na Inglaterra, ficar com hesitações para saber se um regime que mata e fecha o Congresso é ditatorial.” Wolf foi cirúrgico ao retomar o conservadorismo britânico. Edmund Burke, considerado fundador dessa tradição de pensamento, criticou a Assembleia Nacional da Revolução Francesa por não possuir uma efetiva oposição de ideias em sua composição. Imaginem então o que diria o conservador Burke de um regime autoritário que outorgava textos sem apreciação e votos do Congresso Nacional e decretou cassação de parlamentares da oposição e suspensão de seus direitos políticos.
Em uma de suas entrevistas para a emissora Jovem Pan [3], o influencer da direita bolsonarista e autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho foi convidado a dar seus palpites sobre a disputa eleitoral estadunidense do ano de 2020. Ao longo da entrevista, ele acusa a mídia tradicional de ser um instrumento de manipulação sem qualquer valor informativo. Evidente que ele ignorou o fato de que sua entrevista estava sendo transmitida por uma emissora do conglomerado Grupo Jovem Pan, veículo tradicional de mídia que completou 77 anos em maio deste ano.
Mas o conspiracionismo não parou por aí. Além de afirmar que a eleição para presidente dos Estados Unidos teria sido fraudada, o astrólogo também alegou que Joe Biden e sua vice-presidente estariam trabalhando para o governo chinês. Nas recentes reuniões do G7, porém, o atual presidente estadunidense deu sinais claros de estar articulando relações internacionais rígidas ante a China, com ênfase nas frentes comerciais e nos direitos humanos e sob liderança dos Estados Unidos. Pelo jeito, esse plot twist não estava previsto no horóscopo.
O clímax da entrevista, porém, veio através da pergunta do jornalista Paulo Figueiredo Filho. Fazendo referência a supostas conspirações comunistas e ao caos anti-democrático (insuflado por manifestantes trumpistas) das eleições estadunidenses de 2020, ele pergunta:
“O senhor entende que talvez toda essa confusão, talvez seja planejada para a destruição da democracia e das instituições na América?”
A resposta:
“Não tenha a menor dúvida!”
Depois de alguns minutos fazendo alegações acerca de conspirações globais comandadas por bilionários comunistas, Olavo de Carvalho encerra:
“Nós estamos em uma disputa entre a elite e o povão, a elite e o povo trabalhador, o proletariado.”
Confesso que fiquei confuso com as conclusões do entrevistado. Alegadas conspirações do presidente dos Estados Unidos, ataques à mídia tradicional e às instituições americanas e uma suposta luta de classes entre uma elite bilionária global e o povo proletário. Não consegui identificar se se tratava de uma entrevista com o supostamente conservador Olavo de Carvalho ou um discurso de Vladimir Lênin às portas da Revolução Russa.
Qualquer entusiasta da filosofia se empolga ao ver termos como conservadorismo, liberalismo, instituições e democracia na boca do povo, corriqueiramente presentes no debate público. O que frustra, por outro lado, é saber que esses termos têm sido recorrentes em discursos que mais parecem diálogos de alguma sketch satírica e nonsense de Monty Python. O liberalismo tolerante e plural de Merquior passou a ser mero recurso linguístico para relativistas da ditadura militar, e o conservadorismo cético e prudente de Oakeshott foi rebaixado a devaneios conspiracionistas de astrólogos revolucionários. Deu a louca na direita.
REFERÊNCIAS:
[1] ZEMA, Romeu. 10º FÓRUM LIBERDADE E DEMOCRACIA — O CAMINHO PARA PROSPERIDADE. 2019. (20:51). Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Y8AHMVNDZuk>. Acesso em: 18 jun. 2021.
[2] WOLF, Eduardo. 10º FÓRUM LIBERDADE E DEMOCRACIA — O CAMINHO PARA PROSPERIDADE. 2019. (1:01:58). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Y8AHMVNDZuk>. Acesso em: 18 jun. 2021.
[3] OS PINGOS NOS IS. Olavo de Carvalho comenta invasão do Congresso dos EUA. 2020. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=VvJHTTka0AI&t=234s>. Acesso em: 19 jun. 2021.
Texto por Carlos Boeck.
Arte Ruan Alves.