Como negamos nossa própria liberdade?

Clube Damas de Ferro
6 min readApr 12, 2021

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Existe uma dicotomia quando falamos do que é liberdade: diferentes autores compreende-na de acordo com as suas próprias teorias, conectando o contexto histórico com as problemáticas da época. Um belo exemplo disso está no uso do conceito em teorias marxistas e socialistas. Contudo, isso constrói um muro para falarmos o que realmente é a liberdade, em seu sentido pleno. No dicionário, liberdade consiste na autonomia de atos dos indivíduos. Neste sentido, podemos compreender, seguindo o ensinamento de Hayek, que afirmava que “a liberdade não é apenas um valor em particular, é a fonte e condição da maioria dos valores morais”.

Rose Wilder Lane, autora que compreende a liberdade em um sentido próximo ao exposto por Hayek, apresenta uma problemática. Segundo a autora, não existem sociedades livres no mundo moderno — e podemos compreender que no contemporâneo, ou pós-moderno, permanecemos com o mesmo dilema — e nunca existiu na história, estamos nadando em um oceano que nos concede “liberdades”. Ou seja, vivemos em uma sociedade em que uma autoridade, coletivo ou governo nos concede liberdade de ir e vir, expressão, pensamentos e afins, mas não somos livres por inteiro e a cada segundo um anzol poderá ser lançado pescando uma das “liberdades”, sendo assim, compreende o sentido da liberdade em uma condição de concessão. Logo, ela nos atenta aos problemas encontrados em sociedades que a liberdade concedida está mergulhada nos mares da população.

Durante seus estudos, ela buscou alguns exemplos de indivíduos que tentaram mostrar que somos livres e que podemos utilizar a nossa energia da forma que convir para solucionar os problemas sociais das respectivas épocas. Assim, contou como Jesus Cristo, Thomas Paine e diferentes nomes tentaram contribuir para a liberdade. Porém, a sociedade não compreendeu e sempre recorreu a autoridades para solucionar os seus problemas, sempre escolhendo não possuir as suas próprias ações e responsabilidades. A liberdade concedida, segundo a autora, está enraizada na ideia de não conseguirmos analisar o contexto das nossas próprias escolhas, decidindo por não usarmos a autonomia para a construção do nosso “eu”. Contudo, absorve a crítica de todos os regimes de governo existentes na história, incluindo a própria noção do que compreendemos hoje como democracia, já que, a ideia de senso comum acarreta que a democracia é o governo do povo, resultando em uma possível ditadura da maioria e criando uma instituição imaginária — a noção de povo — sendo que “pessoas individuais compõe qualquer grupo de pessoas” (LANE, p.108).

Sendo assim, os governos eleitos por vias democráticas nos concedem uma ideia de liberdade que corrompe o conceito puro da palavra. Nisso, usa como exemplo a vertente revolucionária que se iniciou nos Estados Unidos, na busca pela independência, onde não existia líder, apenas diferentes pessoas que buscavam o mesmo fim: a liberdade. Porém, compreende a importância da constituição, mesmo ela estando nas mãos do “povo” para garantir a sua segurança, em meios práticos e legais. Alguns problemas surgiram por conta da manipulação do povo, como é o caso do nazismo na Alemanha, onde o governo eleito corrompeu todas as garantias de direitos naturais do homem estabelecidos na constituição. Retorna a liberdade concedida, sendo possível, por vias democráticas e constitucionais, ser retirada do homem. Mas, com todos os problemas possíveis, o republicanismo foi — e continua sendo — um dos melhores meios de chegarmos o mais próximo possível do que compreende o conceito puro de liberdade.

A república, comparando com as outras formas existentes de governo — abre uma exceção as monarquias espalhadas pelo mundo que mantêm os ideais — foi como o indivíduo conquistou a concessão da sua liberdade e manteve-na, mesmo com problemas colocados durante o percurso. Os direitos do homem, somado as suas energias liberadas, foram a combustão necessária para o avanço da civilização em todo o continente americano. Essa conquista se deu graças ao indivíduo livre, podendo se movimentar na Terra, garantindo a exaltação da sua força enérgica e compreendendo ser possível manter a liberdade em um sistema de governo, desde que esse governo eleito não atrapalhe as ideias dos homens.

Foi assim que os indivíduos construíram um novo mundo, com tecnologia disponível para aproximar as distâncias geográficas, facilitar a comunicação e reduzir índices de miséria e pobreza. Porém, após 78 anos do lançamento da obra “The Discovery of Freedom”, que inspira esse texto, estamos atravessando um momento que coloca a concessão das nossas liberdades, mesmo garantidas em constituição, no leme. A estabilidade democrática está nas mãos de capitães que direcionam seus navios na borda da Terra — que não é plana.

Nos encontramos, novamente, em um mar de agitações onde o “povo” compreendeu que as ditaduras podem e são aprovadas pelos seus votos, submersas nas suas escolhas e mergulhadas nas suas ações. Estamos atravessando uma ressaca em alto mar, conectada a forma como lidamos com as vidas existentes no oceano. A liberdade está se afogando em águas profundas, presa em um navio que afundou e pensávamos, inocentemente, que não traria riscos para as nossas vidas no futuro. Porém, trouxe! O peixe — nossa liberdade — está preso em uma rede de pesca no fundo das águas, não consegue escapar e não conta com ninguém para ajudá-lo, apenas a sua própria energia que poderá soltá-lo do emaranhado de fios que se prendeu, suas nadadeiras enrolaram-se nos fios, sua boca está presa em uma das pequenas aberturas da rede de pesca e seus olhos clamam por socorro, implorando pela vida e liberdade. Não sei se aguentará dois anos, até as próximas eleições.

Assim como o peixe, devemos utilizar a nossa própria energia em prol do crescimento e conquista da liberdade, mesmo que ela tenha sido concedida por governos ou retiradas por ditadores. Estamos em uma era que negamos o óbvio e precisamos, diariamente, reafirmá-lo em nossos cotidianos. Faz-se necessário afirmar a importância de cada parte da estrutura externa do peixe e que se ele perder alguma sua vida estará correndo sério risco, viverá com medo das armadilhas existentes nas profundezas das águas, acarretando impossibilidade de ser livre. Portanto, manteremos as exemplificações sobre a comprovação da vacina pela ciência e que negar a sua cientificidade com embasamento conspiratório é negar a própria energia humana, desacreditar na razão e inspirar o irracional, privilegiar uma maioria — ou minoria, como preferir — com o custo da sua própria existência, a vida.

Agora, enquanto escrevo esse texto, pousando na realidade e saindo repentinamente do imaginário, o Brasil aponta 337 mil mortes por COVID-19. Durante o ano que enfrentamos uma pandemia, em escala mundial, presenciamos o representante — eleito pelo povo — negar a existência de um vírus, minimizar os danos que foram monstruosos em diferentes escalas ao nível nacional, esses que são irreparáveis. Nos deparamos com realidades que fugiam do alcance natural da mídia, médicos tendo que definir quem deveria sobreviver e para quem seria dado suporte primeiro. Famílias decidindo se teriam o almoço ou o jantar, pois estavam impedidas de lutar pelo sustento. Deixo uma pergunta, mas provavelmente não terá resposta: isso tudo poderia ser evitado?

Mudar os números que já existem é impossível, precisamos refletir para não cometermos os mesmos erros. Ainda não superamos fatos históricos, como a ditadura que assolou o Brasil no século passado, somos obrigados a lidar com conspirações afirmando ter sido uma revolução. Então, o óbvio sendo contestado por algo que muitos julgam ser maior: reproduzir um discurso reacionário e totalitário. Entretanto, em uma escala criada por mim e que poderá diferir para vocês, não estamos no fundo do oceano, podemos afundar muito mais.

Mianmar ficou presa ao fundo do oceano, está no emaranhado de fios da rede de pesca. Toda a autoridade que estava nas mãos de um governo eleito foi retirada e agora quem comanda o país é o Exército. Uma democracia jovem, que ainda não caminhava com tranquilidade, encontrou uma grande escadaria para impedir o seu avanço. Uma pandemia, mortes e sofrimento sendo usados para retirar a liberdade concedida. Essa é a verdadeira ameaça, levantada por Rose Wilder Lane no século passado, experimentado por diversos países ao longo da história e vivida, atualmente, em Mianmar.

Precisamos prestar atenção nessa concessão, a liberdade não deve ser um meio de troca e manipulada pelo poder, ela deveria ser a garantia de todos os indivíduos para buscar o tão esperado fim: a felicidade. Impedimentos forçados por governos, grupos de repressão, negacionistas e, inclusive, militantes de causas coletivistas, não deveriam corromper o conceito natural e a ideia que permeia a palavra liberdade.

A energia humana, que deveria ser a garantia do movimento livre dos indivíduos — leitores estudiosos de física, perdoem a minha incapacidade de desfrutar melhor desse conhecimento — foi colocada em uma caixa secreta, lançada ao fundo do mar. Precisamos buscar, aproveitar enquanto temos a nossa possibilidade de respirar e viver no fundo do oceano e libertar a liberdade da caixa. Ela deve ser inteiramente disponibilizada, não apenas por uma canetada de concessão.

Texto Tailize Scheffer Camargo
Arte Dayane Mattos

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