Capitalismo: a máquina revolucionária do solo

Clube Damas de Ferro
7 min readNov 29, 2021

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O solo, como diz o ator Woody Harrelson no documentário “Kiss the Ground”, é um corpo natural tão antigo quanto à Terra e pode se tornar uma solução simples para um problema que a humanidade busca resolver há muito tempo, manter a espécie humana fora da lista de extinção. O solo tem uma definição diferente para cada área de estudo que o analisa, portanto, para fazer uma análise crítica referente a uma obra que tem este recurso como ponto central é apropriado defini-lo de acordo com a descrição dos agrônomos. Para um engenheiro agrônomo o solo é a camada na qual pode-se desenvolver vida, seja animal ou vegetal, formado a partir do intemperismo e da decomposição de rochas.

O solo possui um lugar de destaque na produção vegetal, pois é o elemento principal de onde as plantas e os animais extraem os recursos necessários para a sua existência. Sua importância é muito diversa e suas funções possuem tantas interações que nem os acadêmicos conseguiram caracterizar cada uma delas. Seu valor, para a produção vegetal, começa por ser o alicerce dos sistemas de produção agropecuária, ele também é o principal substrato utilizado pelas plantas para o seu crescimento, fornecendo água e nutrientes para o seu desenvolvimento, ele tem o papel de reciclar e armazenar os nutrientes e detritos orgânicos, controla o fluxo da água, além de ser o habitat dos microorganismos vivos e da fauna do solo.

A partir dele e da produção em alta escala de alimentos empreendidos por agricultores e pecuaristas foi possível o aumento drástico da população mundial e seu sustento alicerçado nas revoluções agrícolas do século XVIII e XIX. Tais revoluções agrícolas foram resultado das consequências da crise do antigo regime, do feudalismo e da consolidação do capitalismo industrial, que permitiu o grande aumento da produtividade por meio dos maquinários agrícolas.

Entretanto, o solo tem uma função ainda maior segundo o documentário. A sua tese é de que devido à sua grande escala e à sua capacidade de apreender imensas quantidades de gases de efeito estufa, o solo pode ser a única coisa que pode equilibrar nosso clima, reabastecer nosso suprimento de água e alimentar o mundo.

Nesta obra, o narrador coloca o carbono como o motor. “Tudo funciona por causa do carbono, os humanos são feitos de carbono, assim como os micróbios do solo, faz o sistema funcionar”. Ele define o dióxido de carbono como um gás que é sequestrado da atmosfera e transformado em energia pelas plantas, sendo que elas enviam 40% do combustível de carbono para as raízes. Esse carbono está sendo vazado de forma estratégica para os microrganismos do solo, gerando uma troca de nutrientes minerais desses organismos para as plantas.

E nesse processo, os microrganismos fazem uma “cola” de carbono com o combustível de carbono, criando pequenas bolhas de ar no solo para controlar o fluxo de ar e água e esse é um dos meios pelos quais o carbono é fixado no solo. Os microrganismos podem ser considerados um dos eixos para o funcionamento do sequestro de carbono para solo, em vista disso, conservá-los vivos e promover sua continuidade é uma das formas de reduzir a quantidade de gases de efeito estufa na Terra. Entretanto, o uso abusivo de produtos químicos tóxicos, o preparo intensivo do solo e a poluição por alguns herbicidas/pesticidas tem o potencial de matar os microrganismos necessários para extrair o carbono da atmosfera e esse manejo é o predominante nas principais áreas agricultáveis.

A erosão do solo causada por mãos humanas é tido como um dos grandes problemas neste filme. Quando criamos muito solo nu, consequência da agricultura tradicional sem o manejo racional, a superfície do solo é destruída, liberando água e dióxido de carbono, isso seca o solo, transformando-o em pó. Esse processo de destruição do solo é chamado desertificação. Quanto mais profundo é o processo de desertificação, a evaporação se intensifica, reduzindo o processo benéfico para os ciclos curtos de renovação da água, a transpiração.

Todo esse encadeamento, em vez de atrair a chuva, está afastando as nuvens e a umidade necessária para um clima saudável. De forma sucinta, a tese apresentada neste vídeo é de que o ambiente do solo pode reter mais carbono do que a atmosfera e as plantas que vivem na superfície do solo juntas, portanto deve-se conservá-lo e desenvolver uma agricultura regenerativa, diminuindo o manejo intensivo irracional do solo, o uso de fertilizantes químicos e de defensivos agrícolas, incentivar a rotação de culturas, a compostagem e integração animal nas áreas cultivadas.

Este documentário apresentou uma tese muito interessante e crível, entretanto houve alguns problemas pontuais que o tornou de difícil ingestão para engenheiros agrônomos e pessoas que possuem algum conhecimento sobre as dinâmicas do campo. Um dos problemas mais recorrentes neste documentário foi misturar problemas reais com afirmações inverossímeis, subentendendo coisas totalmente descorrelacionadas a partir de manipulações semânticas.

Um exemplo deste artifício foi na afirmação: “Na idade do bronze, grandes áreas ao redor das cidades foram aradas para plantar grãos. Mas quando o solo erodiu, aqueles grandes impérios evaporaram”. Essa afirmação deixa subentendido que há uma correlação entre a agricultura praticada por esses impérios e o declínio das civilizações.

Outra afirmação foi: “Mais de 20 civilizações, em todas as regiões do mundo, fracassaram porque a agricultura está prejudicando o meio ambiente. Suas comunidades não aguentavam a deterioração do meio ambiente e o ambiente e o aumento da população”. Essa afirmação foi transmitida com imagens do Egito e de ruínas do império Khmer, entretanto é conhecido que a decadência do império egípcio se deu por conta da conquista, primeiramente, dos assírios, posteriormente dos persas, dos macedônios e por fim do império romano, além da grande instabilidade interna e da disfunção ambiental do rio Nilo causada por erupções vulcânicas (Manning, 2017). Também não existe correlação entre a atividade da agricultura com a queda do império Khmer, sua decadência se deu por fatores como a guerra com o governo vizinho de Ayutthaya; conversão da sociedade ao Budismo Theravada; o aumento do comércio marítimo que removeu o bloqueio estratégico de Angkor na região; superpopulação de suas cidades e mudanças climáticas trazendo uma longa seca para a região (Buckley, 2010).

Outras afirmações feitas no documentário foram feitas de forma irresponsável: “Terra pobre leva a gente pobre. A pobreza leva ao colapso social. Terra pobre leva a uma frequência cada vez maior de inundações e secas, e imigraão em massa através das fronteiras e nas cidades. E está levando a condições ideais de recrutamento”. Ao realizar essa afirmação unida às imagens apresentadas, eles estão fazendo o interlocutor concluir que por conta da agricultura intensiva o solo de alguns países estão ficando pobres, levando a uma imigração em massa para outras cidades, levando a fortalecer o recrutamento de grupos radicais.

A conclusão que essa sequência nos leva está com diversas falhas, uma delas é que nos locais em que está ocorrendo imigração em massa não é consequente da utilização intensiva do solo pela agricultura, mas por guerras motivadas ideologicamente, principalmente por regimes autoritários coletivistas. A afirmação de que a agricultura convencional leva pessoas à pobreza não é verificável historicamente.

Segundo o Banco Mundial as amenidades básicas para se ter uma vida digna estão disponíveis para os mais pobres do planeta em um volume jamais visto em toda a história da humanidade. E por uma grande margem. Em 1820, aproximadamente 95% da população mundial vivia na pobreza, com uma estimativa de que 85% vivia na pobreza “abjeta”. Em 2015, menos de 10% da humanidade continua a viver em tais circunstâncias. Essa redução da pobreza se deu por conta do aumento exponencial da produtividade gerada na revolução industrial e agrícola (Roser; Ortiz-Ospina, 2017).

Por fim, uma análise crítica quanto ao como se deve proceder para difundir essa tese e melhorar a qualidade do solo é necessária. O documentário coloca a política como o meio vital pelo qual a sua tese deve ser posta, entretanto, a utilização dos meios de comunicação, convencimento através de cooperativas e organizações ambientais, criação de congressos e literaturas sobre a agricultura regenerativa pode ser muito mais eficiente do que acordos políticos feitos pelos representantes e burocratas dos países envolvidos.

Inclusive, o conhecimento deste tipo de agricultura já está sendo bastante difundido nesses meios citados e o plantio direto, a agricultura orgânica, o manejo integrado e várias práticas já estão sendo implementadas em muitas propriedades rurais no Brasil e no mundo. Antes da década de 70 não existia uma propriedade no Brasil com a estratégia do plantio direto, que aumenta a produtividade, lucro e reduz o impacto ambiental, mas com a importação destas técnicas por meio do produtor e empreendedor Herbert Bartz com o apoio de empresas estrangeiras, a região sul se tornou o berço da conservação do solo no Brasil, mesmo com as dificuldades impostas na importação e logística. Hoje mais de 30 milhões de hectares são produzidos no plantio direto, graças à livre iniciativa de indivíduos com objetivos pessoais grandiosos.

O papel do indivíduo como difusor e agente ativo de implementação deste conhecimento nas lavouras não deveria ser passado para outros, a terceirização da responsabilidade dos produtores rurais, agrônomos ou qualquer outro indivíduo que tem como objetivo pessoal melhorar a sua qualidade de vida através de práticas mais produtivas, lucrativas e sustentáveis, tem o potencial de ser uma medida contraproducente, mitigando o poder de cada indivíduo de agir para melhorar a conservação do solo, aumentando o lucro do produtor e criando um clima mais saudável em sua propriedade e na Terra.

O discurso ambientalista que clama pela intervenção estatal, regulações ou planejamentos centrais das grandes nações a partir de agendas elitizadas, provavelmente não vai alcançar seus objetivos, por mais bem intencionados que sejam. Os agricultores alimentaram o mundo por séculos sem sequer conhecer quem consome os alimentos, deixando-os livres novas soluções serão criadas, trate-os bem e assim como uma planta eles darão frutos.

Referências Bibliográficas

Manning, J.G., Ludlow, F., Stine, A.R. et al. Volcanic suppression of Nile summer flooding triggers revolt and constrains interstate conflict in ancient Egypt. Nat Commun 8, 900 (2017). https://doi.org/10.1038/s41467-017-00957-y.

Buckley BM, Anchukaitis KJ, Penny D, Fletcher R, Cook ER, Sano M, Nam LC, Wichienkeeo A, Minh TT e Hong TM. 2010. Clima como um fator que contribui para o desaparecimento de Angkor, Camboja.

Max Roser and Esteban Ortiz-Ospina (2017) — “Global Extreme Poverty”. Published online at OurWorldInData.org. Retrieved from: ‘https://ourworldindata.org/extreme-poverty'.

Texto por Gustavo Querino.
Arte Domithila Novach.

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