A Princesa Isabel era só boazinha

Clube Damas de Ferro
5 min readFeb 17, 2022

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Quando ouvimos pela primeira vez na escola sobre lei áurea, sempre costuma a vir com a observação “mas ela não fez isso porque ela era boazinha”. Nos contam que a abolição não foi um presente dela, mas sim o resultado de muita luta. O que poucos sabem, porém, é que essas duas frases são verdade. Isabel realmente era “só boazinha”, e entender o porquê disso é essencial para saber a razão de 500 anos de história o Brasil não ter heróis.

Isabel, a Redentora

Por décadas o culto à Redentora Isabel foi tão forte no Brasil que se passou a acreditar que a abolição havia sido um presente dela ao invés de o resultado da luta dos abolicionistas e a resistência do povo negro. Foi assim até a década de 70, no entanto, a escolha do dia da morte do Zumbi dos Palmares como data para celebrar o Dia da Consciência Negra mudou este cenário, uma vez que deu mais espaço histórico à resistência negra.

Essa escolha é legítima, afinal os negros libertados pela lei áurea não tiveram uma reforma agrária ou indenização para começarem sua nova vida, mas ela acabou criando um (e também errado) mito histórico. E para que um mito ganhe força, o outro deve ser atacado.

Isabel, a Omissa

Na nova visão, a resistência das comunidades negras torna-se a protagonista do processo, e Isabel passou a ser vista como uma mulher que não se importava com o sofrimento dos escravos nem com a causa abolicionista, mas que assinou a abolição para tentar salvar a monarquia quando a situação já estava insustentável. Essa era a posição de Rui Barbosa, e é a posição defendida pela historiadora Mary del Priore no trecho abaixo:

“Em 1881, ou seja, quase uma década antes da abolição, Isabel fingiu não ouvir os lamentos das senzalas ou mesmo as vozes exaltadas dos púlpitos republicanos. Recém-chegada de uma viagem à Europa em companhia de seu marido, o conde D’Eu, ela evitou o clamor que já dominava as ruas do Rio de Janeiro e se refugiou na residência imperial na região serrana, em Petrópolis. (…) A princesa respondeu assim às reprimendas da velha senhora, com quem mantinha correspondência: “Que demônio pode ter-lhe contado tantas coisas, querida? São os horríveis artigos de José do Patrocínio? Se você não pode ignorá-los, mostre que eles lhe são desagradáveis.” O deboche era endereçado ao combativo abolicionista.” — O Lado B da Princesa Isabel, revista IstoÉ

O trecho acima parece polêmico, mas só quando não se conhece o contexto da época. Em sua autobiografia, o líder abolicionista Joaquim Nabuco divide o movimento abolicionista da década de 1880 em três momentos:

  • 1879–1883: neste período, os abolicionistas combateram sós, entregues aos próprios recursos. Apesar de sempre terem havido pessoas a favor da abolição como os jesuítas, José Bonifácio, Castro Alves e Luis Gama. A liberdade ainda era um sonho impossível, e ser abolicionista nessa época era visto como arruaça. Tanto para o partido conservador quanto pelo liberal, aderir ou não ao federalismo era um assunto mais importante do que a abolição.
  • 1884–1887: a luta dos clubes abolicionistas e da resistência negra, assim como o sucesso de livros como “O Abolicionismo”, converteu o Partido Liberal à causa abolicionista. Ser abolicionista ainda exigia sacrifícios, mas já havia uma massa de jovens, jornalistas, magistérios e padres trazendo o tema ao debate público e convencendo cada vez mais pessoas ao seu redor.
  • 1888: foi neste momento que o clamor das ruas realmente tomou o Rio de Janeiro. O partido conservador aderiu à causa abolicionista, que virou moda entre a população e a elite. A abolição havia ganhado tanto espaço que, como Nabuco relatou ao papa, havia sequestrado o debate político todo para si. Os próprios proprietários, que enfrentavam fugas em massa da resistência negra e alforrias em massa dos clubes abolicionistas, agora também libertavam seus escravos em massa por medo. A situação havia se tornado insustentável e a lei áurea inevitável.

Apesar de 1881 ser quase uma década antes da abolição, nada na sociedade indicava que ela seria abolida tão cedo. Os “horríveis artigos de José do Patrocínio”, como Nery assim chamou, eram artigos de um radical republicano que escrevia mais de uma vez chamando-a de débil. Teria então Isabel aderido por acreditar na causa ou, porque havia se tornado moda?

Isabel, a Camélia Convertida

O historiador Eduardo Silva aponta que o apoio de Isabel já era conhecido em 1886, quando ela e seu pai protegeram o Quilombo do Leblon de ser invadido pela polícia. Este quilombo era uma chácara de José de Seixas Magalhães que abrigava secretamente escravos fugidos. Além de sua plantação de camélias, flor símbolo da abolição, era nesse quilombo que os clubes abolicionistas se reuniam para discussões. José de Seixas presenteava regularmente Isabel com um buquê de camélias em agradecimento, e a princesa teria causado um escândalo ao aparecer publicamente com elas em seu vestido, identificando-se como abolicionista.

Esse apoio também era devido ao seu forte catolicismo, na época liderado pelo papa Leão XIII pelo fim da escravidão no mundo. Podemos ver esse fervor pela abolição no “Correio Imperial”, um jornalzinho abolicionista de 1888 feito por seus filhos crianças, mas que a própria Mary del Priore atribui a Isabel:

O texto traia sua autoria. Ele falava em corações benfazejos, em santo empenho, em querubins na terra, em desfile de anjos de caridade a pedir óbolo para apagar-se entre nós a mácula da escravidão. Ela diria mais tarde que a escravidão, ‘um atentado à liberdade’ humana a repugnava.”

Nem a Santa Redentora, nem a aproveitadora omissa, Isabel era uma mulher fruto do seu tempo que assinou sim, a abolição por “ser boazinha”. Os ataques e esvaziamentos que sofre, porém, nos revelam algo muito maior sobre que tipo de herói preferimos: Macunaíma.

Isabel, a Imperatriz dos esquecidos

Macunaíma foi publicado em 1928 para ser nosso primeiro “herói brasileiro”. Tivemos outros heróis antes dele? Claro! Mas eram todos de antes da república velha então foram descartados.

Assim como em Macunaíma, nossos intelectuais adoram negar os heróis históricos para adorar aqueles que pouco se sabe, mas que concordam com os valores de hoje: os bandeirantes, Leopoldina, Bonifácio, Rui Barbosa, Maria Quitéria, Luis Gama, Nabuco, Rebouças, Patrocínio, Dragão do Mar, Rio Branco, ou até mais recentes como General Lott e Brizola foram todos deixados de lado e a história que aprendemos na escola é a de uma colônia de exploração em que tudo nos foi roubado e todas as revoltas deram errado.

Isabel, porém, é exceção. O culto a ela foi tão grande que ela ainda é lembrada pelo povo, e a lei áurea foi tão importante que é impossível apagá-la das aulas de história. Surge aí o discurso do “ela não fez isso porque era boazinha” para nos ensinar que, se surgiu um herói na nossa história, era na verdade um interesseiro. Como amar um país assim?

É verdade que a abolição foi o resultado de muita luta, mas o discurso não deveria parar nisso. Precisamos aprender os nomes dos heróis que fizeram essa luta acontecer. Só assim vamos poder inspirar as novas gerações de que o Brasil vale sim a pena.

Texto por Paulo Grego.
Arte Nathalia Wnaderley.

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