A OUTRA FACETA DA TECNOLOGIA:

Clube Damas de Ferro
7 min readDec 2, 2021

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Controle das Massas vs Proteção de Dados e Liberdade de Expressão

Os anos de 2020 e 2021, marcados pela pandemia e, consequentemente, o isolamento, não só serviu para suscitar o debate se o Estado Federal pode ou não interferir no nosso direito fundamental de ir e vir, mas também ajudou a evidenciar o crescente avanço e dependência da sociedade nas tecnologias.

Desde que surgiu o espaço cibernético (cyberspace) nota-se como a sociedade modificou as relações de comércio, de trabalho, de direito, bem como relações pessoais que permitiria o acesso a informações e transferência de dados de maneira rápida e eficiente, o que possibilita uma maior oferta na disponibilidade de serviços, ferramentas e a criação de novos recursos.

Contudo, não há somente benefícios, pois a internet facilitou que novas modalidades de crimes se originassem, como o phishing (conversas ou mensagens falsas com links fraudulentos), malwares (softwares maliciosos), spam; e tornou a prática de crimes já existentes ainda mais perigosos, como, por exemplo, calúnia, difamação, ato obscenos, e a troca de informações e imagens de crianças ou adolescentes (relacionado a pedofilia).

Além de todos esses benefícios e males que a internet, como ferramenta amoral, pode oferecer, ela ainda tem o poder de habilitar contextos democráticos e/ou autoritários. Em outras palavras, a tecnologia permite com que mais gente possa expor suas opiniões para um maior número de pessoas, mas, em contraponto, pode auxiliar com que o poder estatal aumente seu controle e vigilância sobre a população: o chamado tecnoautoritarismo.

Controle de Massas vs. Proteção de Dados

O tecnoautoritarismo é um fenômeno mundial, que vem se expandindo em razão do avanço das tecnologias, e tem causado um adoecimento das democracias ao passo que o aparato estatal incha e corrompe o princípio democrático.

Sim, a tecnologia da informação pode deturpar a democracia se não tratada com a devida importância. Exemplo disso aconteceu durante a eleição de Trump em 2016, em que a Cambridge Analytica utilizava-se dos dados dos eleitores para influenciá-los em massa (recomendável ver o documentário Privacidade Hackeada, Netflix) e até no Brasil, com a utilização de disparos em massa nas eleições de 2018.

Os exemplos citados acima fazem levantar o questionamento: estariam mesmo as pessoas votando por sua própria autonomia?

É possível observar essa democracia desvirtuada não apenas durante as eleições, mas também pelos instrumentos legislativos criados para controlar o povo, por meio de tentativas de centralização de bases de dados pessoais para fins de atividade de inteligência estatal, e atividades potencialmente lesivas à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Em 2020, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT, 2020) identificou algumas situações onde o Governo Federal utilizou-se de sua autoridade para criar uma super base de dados que compila informações pessoais de milhões de brasileiros com a justificativa de construção e viabilização de políticas públicas, o Cadastro de Base do Cidadão.

Ademais, houve a iniciativa da criação de dossiês de ativistas de posicionamento político contrário ao governo e ainda o decreto do Presidente que permitia o compartilhamento de dados pessoais sigilosos entre órgãos públicos, sem a permissão expressa dos titulares, as pessoas às quais os dados pertencem.

O atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, tentou adiar que a LGPD entrasse em vigor em 2020, mas, felizmente, sua tentativa falhou; contudo, os fatos supracitados acabam por convergir a um cenário em que a expansão de poder estatal se capilariza através do uso das tecnologias na sociedade.

Fazendo uma breve retrospectiva, quando se introduziu a internet à sociedade logo se percebeu a difícil regularização, afinal se trata de um espaço que conecta o mundo todo sem apresentar barreiras físicas. De acordo com Lawrence Lessig (1997) existem 3 grandes grupos institutos normativos que influem o comportamento humano no mundo físico: as lei (legal), a comunidade (social) e a natureza (físico). Em suma, os humanos escolhem se sujeitar aos dois primeiros, enquanto o último todos são submetidos independentemente do seu querer.

No mundo virtual essa noção se modifica, as leis da natureza passam a ser os códigos, a própria programação (o software), que pode ser modificado e aprimorado, diferentemente do que ocorre no mundo físico.

Outro apontamento que Lessig faz é que as leis, tanto as positivadas como as naturais, têm dificuldade de alcançar seus objetivos no meio virtual, o que contribui para o surgimento de novas modalidades de crimes, que atuam diretamente na privacidade e na autonomia individuais e coletivas.

A Lei 13.709/2018, ou Lei Geral de Proteção de Dados, nasceu com o intuito de preservar a autonomia e privacidade dos indivíduos mediante a essa nova dimensão de crimes. Agora a Proteção de Dados é interpretada como direito fundamental (protegido constitucionalmente). É importante ressaltar que essa proteção não se estende somente às pessoas naturais, identificadas ou identificáveis, mas também às pessoas jurídicas. Mas até onde vai essa proteção?

Em janeiro de 2021, houve um evento chamado de Megavazamento, e não se trata de exagero a utilização do prefixo “Mega”, uma vez que os dados de 223 milhões de brasileiros (entre eles CPF, endereços, fotos, scores de crédito, impostos de renda, entre outros) foram colocados à venda. O mais estarrecedor é que nenhum veículo de informação fala mais disso, o que leva a entender que mesmo tendo sido uma notícia extremamente relevante, ela esfria com o passar dos meses, isso se chegar até a grande mídia.

E as situações que não chegam até a mídia? Não se pode ter certeza que a LGPD deixa incólumes o povo brasileiro e seus dados contra um grupo de hackers, e embora o Governo tenha uma burocracia a seguir no tratamento de dados, não pode ter certeza que ele irá seguir também a política de tratamento, afinal, não existe direito absoluto, até o direito à vida tem sua exceção (artigo 5º, inciso XLVII).

Controle de Massas vs Liberdade de Expressão

Outro apontamento interessante a ser feito é a questão da liberdade de expressão. Sabe-se que, no Brasil, essa liberdade é limitada por outros direitos fundamentais (direito à vida, à privacidade, à igualdade, à honra, entre outros), mas a questão que pretende-se levantar com este texto é quando este direito entra em conflito com o direito à honra.

Mas o que é honra? Nucci (2014) entende que o conceito divide-se em dois: o subjetivo ( em que o que se refere ao sentimento de autoimagem) e o objetivo (que se refere a reputação que o indivíduo dispõe perante a sociedade). Nesse sentido, existem três artigos no Código Penal (CP/40) que serão tratados mais a fundo, afinal consubstancia no embate dos dois direitos aqui em destaque.

Um breve resumo:

● A calúnia, art 138, CP/40, é quanto se imputa falsamente um crime a alguém;

● A difamação, art 139, CP/40, é quando se atribui um fato desonroso a reputação de alguém, independente de ser falso ou não;

● A injúria, art 140, CP/40, é quando há uma ofensa dolosa a dignidade da vítima, independente se falso ou não;

Insta salientar que os três crimes (calúnia, injúria e difamação) têm suas penas aumentadas se o meio utilizado para a propagação destes foi a internet. Ou seja, vemos um claro caso de quando o direito à honra se encontra em estado de preferência em detrimento à liberdade de expressão. O presente texto não entra no mérito se essas condutas criminalizadas deveriam realmente suscitar uma punição, mas tratando única e exclusivamente dos efeitos da criminalização.

É sabido que a internet é um meio que as pessoas se encontram com maior facilidade com quem tem pensamento diferente e muitas vezes conflituoso, inflamando discursos em um ambiente com imediata dispersão de informação. Essa facilidade de comunicação entre pessoas de grupos sociais distintos torna natural que pessoas se ofendam, inclusive sem intenção, mas que causam os mesmo resultados do que se fosse, afinal, a capacidade de pensar gera o risco de ser ofensivo. Mesmo assim elas são punidas. Mas que efeito isso causa?

O efeito que se pretende destacar agora é o de chilling-effect. O termo significa que “ações legais como a aprovação de uma lei, a decisão de um tribunal ou a ameaça de um processo; qualquer ação legal que faça com que as pessoas hesitem em exercer um direito legítimo por medo de repercussões legais” (The Lawyers & Jurists Foundation, 2010), ou seja, por medo de serem punidas as pessoas evitam expor sua opinião, desencorajando um debate público rico.

Esse controle das massas, que muitos por ânimos inflamados, acabam por esbarrar nesses artigos não-intencionalmente, e são punidas com multa ou com restrição de liberdade não corrigem a situação, não sanam o dano da vítima e muito menos enriquecem o debate público.

De fato, a tecnologia como um todo permitiu um avanço em muitos aspectos da sociedade, mas como ferramenta, ainda pode ser mal utilizada, intencionalmente (como apresentado com o argumento do tecnoautoritarismo), ou não (como o argumento do chilling-effect). O objetivo desse texto foi justamente evidenciar a utilização e regulamentação descuidada da internet e ao menos tentar suscitar um debate apropriado.

Referências

Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT). Retrospectiva Tecnoautoritarismo, 2020. (pp. 2–6).

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. Editora Forense, Rio de Janeiro. 10ª edição, 2014, p. 744.

Chilling effect in Law. The Lawyers & Jurists Fundation, 2010. Disponível em: CHILLING EFFECT IN LAW | The Lawyers & Jurists (lawyersnjurists.com). Acesso em 20/10/2021

LESSIG, Lawrence. The Constitution of Code: Limitations on choice — Based Critiques of Cyberspace regulation. 5 CommonLaw Conspectus 181, 1997. Disponível em: https://scholarship.law.edu/commlaw/vol5/iss2/5. Acesso em: 19/10/2021

PRIVACIDADE HACKEADA. Direção: Karim Amer, Jehane Noujaim. Produção de Judy Korin, Pedro Kos, Geralyn Dreyfous, Karim Amer. Estados Unidos: Netflix, 2020.

Texto por Letícia Sorrequia.
Arte Domithila Novach.

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